Bons dias sempre!
Que seu
dia seja radiante como nos é a Luz do Sol e a alegria refletida pela Lua.
“HOJE, DIRECIONO-ME, REORGANIZO-ME E ALCANÇO
MINHA LIBERTAÇÃO. EU SOU GUIADO PELA MINHA PRÓPRIA FORÇA”
Que
estejas bem!
Começamos
a semana compartilhando com você um curioso artigo de *Rogério Favilla e que nos traz ótimas reflexões sobre a cultura
xamânica.
Boa leitura!
*Rogério Favilla é Etnobiólogo, Holoterapeuta e Coordenador do Núcleo de
Estudos Transdisciplinares Scientia Una e do Projeto Transcultural Scientia
Una, é Membro da Comissão Executiva do Movimento Inter-Religioso do Rio de
Janeiro e Pesquisador Associado e Membro do Conselho Consultivo do Centro de
Estudos Transdisciplinares da Consciência/Escola de Comunicação/UFRJ.
CULTURA XAMÂNICA E SABEDORIA ANCESTRAL
AS
RELAÇÕES DE CONFIANÇA COMO VALOR CENTRAL
Há cerca de 80 mil anos nossos
ancestrais Homo sapiens deixaram a África para ocuparem todos os
recantos e climas do planeta. Mudanças climáticas favoráveis ocorridas neste
período da história africana permitiram que os pequenos grupos familiares
humanos finalmente cruzassem a última barreira para a sua expansão, o
escaldante deserto norte-africano.
Após séculos de aridez
intransponível, a chegada de frequentes ciclos de chuva criou um corredor
geográfico por onde os caminhantes ancestrais lograram alcançar a pé o Oriente
Médio e, daí, ao longo de milhares de gerações, toda a Europa e a Ásia. Há 30
mil anos chegaram por mar à Oceania; há 25 mil anos cruzaram o Estreito de
Bhering para ocuparem então os territórios americanos.
Este incansável avançar por terra,
rios e mares, transpondo montanhas, desertos, florestas, geleiras -enfrentando
condições climáticas e geográficas extremas- só se fez possível graças às
características cognitivas peculiares de nossa espécie, dentre as quais
destaca-se a nossa capacidade de conexão afetiva grupal, em essência, familiar.
Por milhares de anos só podíamos contar uns com os outros para aumentar as
chances de sobrevivência cotidiana da comunidade num mundo onde se convivia com
todos os tipos de perigos e dificuldades.
Nesta longa e incrível jornada
desenvolveram-se as variedades étnicas, linguísticas e ideológicas que hoje
conhecemos. Esta diversidade tem sido tanto o trunfo adaptativo da nossa
espécie quanto a fonte de conflitos e intolerância entre as comunidades
humanas, na medida em que elas se etnocentram. Quando elas passam a considerar,
narcisicamente, suas cosmovisões e mitologias como sendo o Centro do Mundo (Axis
Mundi). E, a elas mesmas, as primeiras a serem criadas, como se fossem “os
filhos diletos da Criação”.
Caçar, pescar e coletar os
alimentos animais e vegetais necessários, assim como proteger-se dos predadores
e do clima eram tarefas só possíveis para uma espécie sem garras ou presas
poderosas porque havia a cooperação social e comunicação inteligente entre os
membros dos grupos humanos.
Na consolidação destas relações
afetivo-cooperativas distinguiram-se características psico-biológicas, como a
postura bípede, a grande capacidade cognitiva e manual, a longa dependência
familiar do bebê humano e a linguagem; e também conquistas tecnológicas
importantes, como a capacidade de confecção e uso inteligente de artefatos,
vestuário e armas letais, a manipulação controlada do fogo e as práticas
rituais de êxtase espiritual.
AO REDOR DO FOGO
Reunidos em torno do fogo, os
ancestrais compartilhavam as aventuras do dia; planejavam e decidiam sobre os
problemas e situações que se apresentavam; e contavam, cantavam e dançavam as
histórias e experiências acumuladas para os jovens. Na presença do fogo
realizavam seus rituais xamânicos de conexão com a Mãe Natureza e o mundo
espiritual.
Ou seja, reunidos na segurança do
calor e luz, nossos ancestrais, em constante união, estreitaram os laços
sócio-afetivos que permitiriam lançar a sua presença e influência nos variados
espaços físicos que passariam a ocupar.
Esta foi a característica das
culturas xamânicas paleolíticas por mais de 80 mil anos até o surgimento das
primeiras sociedades agrárias. Há apenas oito mil anos o desenvolvimento das
cidades trouxe a fragmentação da unidade tribal através da acumulação
individual de riquezas e poder político, da especialização das tarefas e da
divisão estrita em classes sociais.
Este movimento acabou por
substituir as matrizes paradigmáticas matrifocais cooperativas e integrativas
pelas patriarcais conquistadoras e controladoras, a partir do qual se desenvolveram
e estabeleceram as civilizações modernas, em contraponto às culturas xamânicas
ancestrais que perduram até hoje.
Estas culturas possuem, em geral,
uma visão animista do mundo, onde todas as coisas possuem ou são cuidadas por
espíritos dos mais variados tipos e manifestações. Espíritos que podem ser
aliados ou adversários, podem auxiliar ou atrapalhar, podem curar ou adoecer,
que podem ser aplacados ou instigados.
Pode-se entrar no mundo dos
espíritos através dos sonhos ou das visões. Pelo sonho fala-se com os
ancestrais, familiares e entidades míticas; pode-se aprender sobre as origens
das coisas, como curar doenças, como dominar as forças mágicas que compõem a
natureza, a fazer feitiçaria. O estado do sonho é tão ou mais real que o da
vigília, e nele é que se realizam as maravilhas que mantém o mundo existindo,
funcionando em harmoniosa fluência.
AS EXPERIÊNCIAS VISIONÁRIAS
É nestas experiências visionárias
para contatar o mundo espiritual, e obter conhecimento mágico e sabedoria
ancestral, que fundamentam-se os costumes e valores das culturas xamânicas.
Determinados membros das comunidades vivem na dimensão do Sagrado através de
diversas tecnologias que permitem que eles se conduzam e conduzam aos outros
membros a estados de consciência diferentes do estado ordinário.
Este é o uso ritual de música,
dança, jejum, mortificações, privações sensoriais e plantas psicoativas. Sendo
que estas últimas tornaram-se, mesmo, o fundamento ritual e simbólico da
própria Identidade Ancestral em diversas etnias, como a árvore Jurema (Mimosa
hostilis) entre os nativos do Nordeste brasileiro, o cactus Peiote (Lophophora
williamfii) entre os nativos norte-americanos, o cactus Wachuma (Trichocereus
pachanoi) entre os andinos e os cogumelos mágicos (Psilocybe mexicana,
P. aztecorum, o Teonanacatl -“a carne dos deuses”) das comunidades
mexicanas.
Os indivíduos que ocupam o papel
de condutores e portadores deste corpo de conhecimento espiritual são
categorizados nas ciências antropológicas como “shamans” (xamãs),
transcrição russa da palavra ‘saman’, termo dos Tunguses siberianos para
designar os seus viajantes do mundo dos espíritos, os conhecedores diretos das
histórias ancestrais e do universo espiritual: os detentores da cosmovisão.
Apesar da categoria antropológica
do Xamanismo assumir uma generalidade teorética razoável, deve-se de modo
constante ter em mente o fato concreto das culturas xamânicas apresentarem
diferentes historicidades, cosmovisões, níveis econômicos e formas de
organização social.
Este termo tornou-se, a partir do
século XIX, a categoria na qual a visão de superioridade racial européia
vigente juntava tudo o que julgava “primitivo”, supersticioso e selvagem das
“inferiores” culturas tribais, consideradas -quando muito- como apenas “mágico-religiosas”,
mas nunca possuidoras de estruturas verdadeira ou superiormente religiosas.
No entanto, a partir da metade do
século XX, estudiosos como Claude Lévy-Strauss, Mircea Eliade, Joseph Campbel,
Richard E. Schultes, Robert G. Wasson, Darci Ribeiro, Roberto da Matta, Michael
Harner e outros abordaram estas culturas mais pro fundamente, utilizando modelos
mais apropriados às dinâmicas culturais estudadas.
Proliferaram as discussões e as
mudanças do paradigma pelo qual os povos xamânicos eram até então vistos,
passando-se a uma valorização de suas formas de relações sociais e práticas
espirituais.
É neste ambiente que surge, de
forma gradual e firme, o neo-xamanismo. Nos grandes centros urbanos, durante o
movimento contracultural dos anos 60, ele aparece como um movimento espiritual
oriundo do universo terapêutico alternativo, devido à proximidade “ideológica”,
por assim dizer, já que também baseado no conceito holístico de cura segundo o
qual corpo, emoções, mente e espírito articulam-se num só sistema interligado (hólon),
onde o espírito afeta o físico e o individual se integra ao grupal.
A DINÂMICA FAMILIAR E OS CONSELHOS TRIBAIS
Atualmente percebe-se um interesse
crescente de inúmeros indivíduos, de diversos segmentos das sociedades urbanas
atuais, pelo conjunto de práticas de cura e de valores espirituais oriundos das
culturas xamânicas nativas de todos os recantos do planeta.
Quais são as razões para que
membros pertencentes à moderna sociedade tecno-científica, racional e
individualista, voltem seus olhares para o universo arcaico, mitológico e
extático-onírico do Xamanismo?
Parte da resposta talvez esteja na
percepção profunda por parte destes “novos índios” que os enormes desafios
econômicos, políticos, sociais e ecológicos que a humanidade encara no
alvorecer do século XXI são, em boa medida, frutos da crise espiritual na qual
a aquisição material e individualista eleva-se muito acima dos valores
regionais, comunitários e espirituais.
Pressionados fortemente a
absorverem a implantação deste modo de vida estressante e fragmentador do ser,
estes indivíduos sentem a necessidade de fazer uma ampla revisão dos valores
intrínsecos desta sociedade, ouvindo dentro de si um chamado irresistível das
origens ancestrais.
O fato é que na busca de soluções
para a crise contemporânea encontram-se na releitura destas culturas arcaicas
muitos elementos significativos para a construção de modelos de organização e
relações sociais passíveis de inspirar o aprimoramento das instituições
democráticas e relacionais da sociedade ocidental moderna. Neste sentido
destaca-se principalmente a dinâmica familiar e os conselhos tribais, valores e
experiências organizacionais bem sucedidas por muitos milhares de anos a mais
do que o tempo que existem as recentes civilizações urbanas.
Os valores familiares, a
reverência espiritual aos ancestrais e respeito às manifestações da Natureza
compõem o núcleo “ecopolítico” das sociedades tribais, nas quais, na maioria dos
casos, os anciões são profundamente respeitados: a experiência e méritos acumulados
por eles são o fundamento da reverência e escuta dos mais jovens.
Complementado este conjunto de
respeitos totalmente estranhos à sociedade contemporânea, nas sociedades
ancestrais as crianças são respeitadas em suas necessidades básicas e
orientadas para a manutenção da harmonia comunal, ao mesmo tempo em que são
estimuladas a desenvolver as suas capacidades individuais no máximo de suas
possibilidades.
Todas as questões são discutidas e
decididas em conselhos familiares e tribais, de volta ao redor do fogo sagrado,
onde os participantes admitidos têm o pleno direito de manifestarem à vontade
os seus pensamentos e, o que é mais importante ainda, de serem verdadeiramente
escutados.
A linguagem e a importância
contida nos sonhos-visões dos membros da comunidade xamânica são outra dimensão
importantíssima que precisa ser compreendida com mais atenção do que em geral o
fazemos. Decisões importantes e efetivas são tomadas nestas sociedades a partir
destas leituras visionárias. A intuição é valorizada como processo cognitivo
válido, integrativo e decisivo.
Os ritos de passagem também são um
importante resgate para a contemporaneidade. Há uma noção clara das tarefas e
deveres de todos, nas várias fases da vida, que é internalizada através da
observação meticulosa dos comportamentos e exemplos cotidianos. Como a maioria
destas culturas são ágrafas, elas desenvolveram modos notáveis de memorização
das complexas e riquíssimas tradições –de suas cosmovisões através de símbolos,
mitos, ritos, canções e histórias, que só são preservados pelo exercício de uma
escuta e de uma observação extraordinárias e extremamente respeitosas. Algo
difícil de compreendermos, criados que somos em uma cultura fundada na fala
narcísica. Nas sociedades xamânicas, sejam as pinturas corporais, ornamentos, cestuário
ou as cerâmicas, todo pequeno aspecto e ato do cotidiano transpira a espiritualidade
e a identidade ancestral.
Tudo está organizado de maneira a
ancorar a constituição fundamental da identidade, permitindo que cada membro da
comunidade saiba quem é e a que pertence, facilitando assim, e muito, o
desenvolvimento de pessoas saudáveis e integradas às suas sociedades: assim
surge naturalmente um bom caçador, o bom guerreiro, o bom plantador de sua
roça, o sustentador de seu grupo familiar, o mantenedor de suas tradições.
A pedagogia nativa é profundamente
pragmática e visa preparar o indivíduo tanto para ser autônomo em suas
capacidades de viver e se expressar quanto útil na convivência comunitária.
Esta pedagogia do respeito à individualidade reflete-se no fato de raramente
exercerem-se repreensões violentas às crianças, assim como no fato de entre os
adultos não ocorrer ações coercitivas.
Em outras palavras, nenhum
indígena impõe ordens a outro indígena, imperando o bom senso e o respeito à
vontade de atuação dos indivíduos, a distribuição e aceitação das tarefas
necessárias para a harmonia tribal. O sistema de comando é emergencial, ou
seja, a liderança surge na medida exata do que é que precisa ser resolvido. O
mais capacitado se apresenta e dá a solução da qual o grupo necessita.
Quando os índios xinguanos, por
exemplo, se reúnem pela manhã após um bom mergulho na lagoa para distribuírem
as tarefas do dia, o fazem de acordo com a disposição de cada indivíduo,
tendo-se assim a certeza de que as tarefas estarão completadas no tempo
esperado, como o mutirão para a construção ou conserto de uma maloca para uma
família. Mesmo quando competem em suas disputas coletivas intertribais, como as
lutas huka-huka que ocorrem na celebração dos mortos (Kuarup),
por exemplo, eles são ensinados a não tripudiarem dos perdedores.
UMA IMENSA E VALIOSA HERANÇA
O Ocidente tem muito a agradecer à
cultura xamânica. Nas mais variadas áreas de sua vida. Devemos aos povos
nativos muitas inovações fundamentais sem as quais não seríamos o que somos.
Aos nativos pré-colombianos devemos, entre inúmeras coisas, a rica herança
etnobotânica que revolucionou a dietária e a farmacopéia da Europa.
Não apenas apresentaram aos pasmos
europeus plantas em si, como o milho, o tomate, a batata, o tabaco, o cacau, a
mandioca, o inhame, o feijão, o caju, a batata-doce, o abacate, o pepino, a
berinjela, o abacaxi, o palmito, etc., mas também os ensinaram como cultivá-las
e prepará-las adequadamente: como retirar da mandioca o ácido prússico, por
exemplo. Ao contrário dos que pensam serem os nativos criaturas obtusas, a arte
do cultivo e melhoria genética através da cuidadosa seleção das linhagens e de
técnicas sofisticadas de plantio, irrigação e adubagem foram profundamente
desenvolvidas pelos ameríndios.
Mas a contribuição destes povos e
civilizações vai espantosamente muito além. No campo da reformulação social e
política que se prenunciava na Europa do século XVIII, a vida comunal dos
índios brasileiros influenciou profundamente as formulações filosófico-políticas
de ideólogos da Revolução Francesa como Montaigne e Rosseau1 através dos
relatos de cronistas populares como Léry, Thevet e Hans Staden.
Mesmo assim, profundamente
beneficiado, o Ocidente retribuiu de forma devastadora. É bem conhecido o
trágico resultado da história do encontro entre as sociedades xamânicas das
Américas, África, Ásia e Oceânia com a civilização européia a partir do ciclo
das grandes navegações no século XVI: doenças mortais ou incapacitantes,
escravidão, segregação, alcoolismo, prostituição, estupro, humilhação, ocupação
e expulsão de seus territórios, apropriação de seus conhecimentos, destruição
de suas crenças ou puro extermínio.
As culturas xamânicas que lograram
sobreviver a estes reveses enfrentam o desafio de sobreviverem na atualidade.
Os Onges, Sentinelenses e Jarawas das ilhas Andaman, por exemplo, estão entre
as mais antigas comunidades humanas ainda existentes, mantendo sua integridade
genético-cultural desde cerca 80-60 mil anos atrás.
Isolados por milhares de anos dos
acontecimentos históricos no continente asiático e mantendo-se hostilmente
avessos aos ocasionais encontros com navegantes continentais, só vieram a ter
contato com as civilizações agrárias e comerciais quando os ingleses ali
estabeleceram uma colônia penal. Foi entre os Adamanenses que o antropólogo
inglês Radclife-Brown realizou seus mais importantes registros e trabalhos
etnológicos.
Após a independência da Índia em
1948, as ilhas foram anexadas e ocupadas por colonos indianos. Desde então a
pressão civilizatória tem condenado os andamanenses praticamente à extinção
cultural. Atualmente sobrevivem apenas cerca de 400 ilhéus originais.
Já no século XX, os povos
siberianos ancestrais também sofreram uma enorme opressão cultural por parte do
Estado Soviético, sendo rigorosamente proibidos de exercerem abertamente suas
práticas espirituais milenares e suas línguas, tendo seus objetos rituais e
talismãs sagrados apreendidos e queimados, e seus líderes xamânicos
perseguidos, aprisionados, deportados ou mortos.
Os últimos xamãs tradicionais
siberianos foram registrados na década de 1930. Desde então, esta cultura
ocultou-se no seio das comunidades mais ermas, mas muito do conhecimento
tradicional pré-soviético perdeu-se definitivamente. Mesmo assim poucos indivíduos
remanescentes ainda conhecem os mitos, usos, as danças e os dialetos tradicionais.
Foi este tipo de perda cultural -etnocídio- que repetiu-se por todo o globo durante
os últimos 500 anos. Uma absoluta falta de diálogo entre as civilizações.
A despeito destas perdas, muitos
povos demostram a determinação de manter ou resgatar a sua originalidade
cultural, mesmo que para muitos isso signifique um intenso contato com o
universo ocidental, seja organizando-se em entidades politizadas e
reivindicatórias, seja utilizando as tecnologias e mídias modernas como a
internet, ou estudando e se formando nas cidades para retornarem às tribos com
a possibilidade de darem à civilização hoje dominante uma maior compreensão das
suas necessidades.
O fato é que os estados nacionais
que os envolveram territorialmente ao longo do processo histórico não sabem
realmente o que fazer com eles.
O RESGATE DA SABEDORIA ANCESTRAL
O resgate vem ocorrendo não apenas
entre os povos xamânicos, mas também nos movimentos espiritualistas neo-pagãos
na Europa e nos EUA buscam suas raízes célticas pré-cristãs, como o
Neo-Druidismo, os Wiccanos, etc...
Esta tendência é proporcional,
muitas vezes, ao abandono das influências da religiosidade cristã, já que o
cristianismo teve um papel decisivo no combate e destruição das formas
ancestrais de culto à Terra, à fertilidade e aos ancestrais, pressionando estas
culturas –de todas as maneiras- no sentido delas se envergonharem de suas
ancestralidades e, através da conversão, a negarem suas identidades ancestrais.
Foi muito comum nas Américas, por
exemplo, a prática institucional de separar as crianças nativas dos pais e
enviá-las para conventos, escolas e missões cristãs onde eram punidas se fossem
pegas falando o idioma natal.
Outro aspecto é o da catequese
manipulando a mitologia local de modo a introduzir os conceitos fundamentais do
cristianismo através da distorção da hierarquia ritualística enfatizada pela
tradição original. Assim substituiu-se entre os Tupis-Guaranis do Brasil o
culto ao herói ancestral Jurupari pelo do espírito das tempestades Tupã, até
então secundário na ritualística tupi.
Jurupari, o Filho do Sol que
outrora criara o código de regras de como viverem em comunhão entre si e com o
mundo, foi convertido pelos catequistas em sinônimo do Diabo, um espírito
destrutivo e pervertido no lugar do herói ancestral que lhes dera a sabedoria
nas artes da sobrevivência, da caça e do roçado.
Missionários “salvacionistas”
cristãos, católicos e evangélicos, ainda insistem hoje em subverter as bases
culturais originais das comunidades nativas sul-americanas. As religiões
“superiores” ainda consideram imperativo retirar estes povos das “trevas do
animismo demoníaco” e dar-lhes o “verdadeiro” sentido espiritual da vida.
Mas não foi só a cristandade
católica que engolfou os indígenas. Também o protestantismo deixou a sua marca
na história recente destes povos. Este é o caso dos nativos das planícies
norte-americanas que tiveram o seu modo livre de vida nômade-caçador encerrado através
da destruição maciça dos preciosos búfalos e, por fim, pelo golpe fatal que foi
o genocídio nas Guerras Índias dos anos 60-70 do século XIX.
A maioria das tribos
remanescentes, velhos, mulheres e crianças incluídos, foi transportada para uma
reserva comum no pior solo de Oklahoma, muito longe de seus territórios, em
trens fechados e vigiados por soldados. Como os curumins brasileiros, as
crianças foram apartadas de seus familiares e enviadas a escolas religiosas
para “reeducação” e “integração” aos “superiores” valores da nova civilização
cristã estadunidense, para muitos brancos, a Nova Jerusalém prometida por
exegeses bíblicas distorcidas, onde se interpretava a permissão da tomada dos
territórios dos selvagens destituídos de alma e de Deus, sob o nome de Destino
Manifesto.
Demonizada assim a diferença,
eliminou-se a necessidade de se cumprir tratados com os indígenas (todos foram
rompidos unilateralmente), de respeitar e de procurar compreender aqueles que
eram os seus antecessores na nova terra.
Hoje temos a possibilidade de
redimir esta dificuldade de compreensão da diferença e a absoluta falta
de diálogo inter-cultural, constantes na interação histórica entre os Estados
(monárquicos e “democráticos”) dominantes e os povos xamânicos por eles
englobados.
Só assim poderemos resgatar
dignamente, para o nosso próprio bem e de nossos descendentes, os profundos
conhecimentos empíricos que eles desenvolveram ao longo de milênios de
adaptação, experimentação e observação da Natureza.
Caso contrário estaremos apenas
mais uma vez simplesmente, por exemplo, nos apropriando e explorando
economicamente os conhecimentos etnofarmacológicos para a nossa própria
comodidade, implantando projetos de ecoturismo ou de exploração “cooperativa”
dos recursos das terras indígenas, sempre tratando-os como “simpáticos
espécimens” culturais exóticos e puramente folclóricos, sem quaisquer lições
válidas para o racional Ocidente.
É o momento de re-olhar e aprender
os valores perdidos da celebração significativa, do êxtase espiritual
transformador, da pedagogia da independência e liberdade pessoal aliada ao
respeito natural aos ancestrais e à relação familiar e comunitária, valores que
permitiram a sua sobrevivência e prosperidade nos mais inóspitos ambientes por
incontáveis gerações, e mesmo a sobreviverem no mundo contemporâneo.
Só assim os indivíduos urbanos que
pululam hoje em toda parte identificados com estes valores tradicionais, e
muitos intermediam estas práticas responsável, podem de maneira respeitosa e
responsável passar a exercerem o papel de novos xamãs, aprendendo com os xamãs
tradicionais e passando este conhecimento fundamental e decisivo para as
futuras gerações de maneira a que não cometamos o mesmo erro que nossos
antepassados cometeram.
Desta maneira responsável, os
novos xamãs, não raro re-lendo, recriando, atualizando de acordo com suas
realidades sociais, dentro de suas próprias miitologias pessoais,
poderão exercer e disseminar as práticas sociais nativas como a organização em
conselhos tribais e a distinção pelo mérito verdadeiro.
Ao mesmo tempo, os novos xamãs,
servindo de ponte entre os dois mundos tão assimetricamente relacionados,
fundamentados no reencantamento da Natureza, que é a visão xamânica da vida,
teremos o resgate ecopolítico necessário à sobrevivência do planeta.
Poderíamos dizer, então, que, de
modo geral, temos hoje convivendo, se conflituando e se articulando o Xamanismo
Tradicional (paleo-xamanismo) e o Xamanismo Moderno (neo-xamanismo), abrindo-se
assim novos espaços de alianças entre as tradições nativas e os membros da
cultura urbana, o que aumenta mutuamente a escuta e o tão desejado diálogo
entre as civilizações.
Aproveite,
Alimente sua Floresta de Luz!
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